domingo, 4 de janeiro de 2009

Novo Ano, Novo desafio...

"Lembro perfeitamente a tarde quieta em que parei à porta da pensão, para tomar um quarto sem refeições: chambre à louer. Puxei a argola de latão da campainha e esperei alguns instantes. A porta abriu-se e vi aparecer uma mulher forte, rosada, loira e mal penteada, com um avental de riscado azul, por sinal um pouco enxovalhado. Sorriu e acolheu-me cordialmente.
(...)
Anoitecia cedo, e eu sufocava de tristeza e nostalgia. Ainda não tinha tido tempo de fazer amizades, os meus trabalhos de laboratório estavam indecisos, e em vão tentava interessar-me pela gente com quem, ocasionalmente, entrava em contacto. Saía de manhã, sem sol, e reentrava ao prematuro entardecer. Tinha levado anos a sonhar com a independência, que nunca usufruíra, a meu gosto, e agora, senhor de mim, sentia-me de repente incapaz de usar dela. (...)
A verdade, não tardaria a sabê-lo, é que a liberdade pessoal e o sossego se pagam em silêncio, tributo o mais pesado. Por contraditório que pareça, só a presença de outros seres humanos acorda em nós as reacções que nos forçam a pensar, a mobilizar os conhecimentos, e a agir. Isto explica como é que eu nunca consegui viver sozinho nem longe -- duas coisas que desejava ardentemente.
(...) Mas esta dialéctica da misantropia (ou timidez) não será demasiado especiosa para ti, Léah?"
Pequenos trechos de um conto de um autor português da década de trinta, démodé.

3 comentários:

Existente Instante disse...

Amiga Vida Suspensa: Léah? Contos? Autores portugueses anos 30 ? Confesso que não identifiquei pelo extracto, depois com as indicações finais bastou ir à biblioteca caseira e...José Rodrigues Miguéis " Léah e Outros Contos".
Só um desacordo consigo( ou seria a sua ironia?): "démodé" talvez seja,esquecido sim, na incultura literária reinante em Portugal, e nas figuras, figurinhas e figurões mais ou menos jovens que vão enfeitando a árvore literária nacional, porque na realidade JRM foi uma das vozes mais poderosas da Literatura Portuguesa do Século XX e só quem não leu " Escola do Paraíso" e "O Milagre Segundo Salomé" pode afirmar o contrário.
Espero não me ter enganado.
Ah! Neste momento e já para longos momentos e semanas virado para a poesia.
Bem-Haja pelo relembrar deste fabuloso escritor.

Sara Oliveira disse...

Bem vindo, depois das férias de Natal. É, efectivamente, José Rodrigues Miguéis. Léah e outros contos foi um livro que eu também já tive na minha biblioteca, mas, por gostar tanto dele, emprestei-o.
Há algum tempo que eu gostaria de o ter colocado na Vida Suspensa. Encontrei entretanto um daqueles livos que analisam outros livros. E aqui está. Entretanto vou procurar os que aqui refere, se bem que eu ache que não vão ser fáceis de encontrar. O démodé era ironia.

Hugo de Oliveira disse...

Eu gostei do texto...

Parabéns!

Também gostei do wall-E aqui ao lado x)