"Lembro perfeitamente a tarde quieta em que parei à porta da pensão, para tomar um quarto sem refeições: chambre à louer. Puxei a argola de latão da campainha e esperei alguns instantes. A porta abriu-se e vi aparecer uma mulher forte, rosada, loira e mal penteada, com um avental de riscado azul, por sinal um pouco enxovalhado. Sorriu e acolheu-me cordialmente.
(...)
Anoitecia cedo, e eu sufocava de tristeza e nostalgia. Ainda não tinha tido tempo de fazer amizades, os meus trabalhos de laboratório estavam indecisos, e em vão tentava interessar-me pela gente com quem, ocasionalmente, entrava em contacto. Saía de manhã, sem sol, e reentrava ao prematuro entardecer. Tinha levado anos a sonhar com a independência, que nunca usufruíra, a meu gosto, e agora, senhor de mim, sentia-me de repente incapaz de usar dela. (...)
A verdade, não tardaria a sabê-lo, é que a liberdade pessoal e o sossego se pagam em silêncio, tributo o mais pesado. Por contraditório que pareça, só a presença de outros seres humanos acorda em nós as reacções que nos forçam a pensar, a mobilizar os conhecimentos, e a agir. Isto explica como é que eu nunca consegui viver sozinho nem longe -- duas coisas que desejava ardentemente.
(...) Mas esta dialéctica da misantropia (ou timidez) não será demasiado especiosa para ti, Léah?"
Pequenos trechos de um conto de um autor português da década de trinta, démodé.